domingo, 23 de janeiro de 2011

A Mais Triste das Prisões

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Quem está mais à mercê dos perigos da vida: quem se expõe de mais, ou quem se expõe de menos?

Quando eu tinha 17 anos, fazia o terceiro ano do ensino médio. Era 1997, e eu morava em Brasília. Naquele tempo eu precisei fazer um trabalho avaliativo de Inglês, o qual consistia em traduzir uma música do idioma em questão. A que escolhi foi uma do Metallica chamada "One". Hoje eu me lembrei dela, e há algo em sua letra que é muito sugestivo e representativo nos dias de hoje. Um trecho, em especial, destaca-se para os fins desta postagem:

Darkness imprisoning me = Trevas aprisionando-me
All that I see: absolute horror
= Todo que vejo: absoluto horror
I cannot live
= Não posso viver
I cannot die
= Não posso morrer
Trapped in myself
= Preso em mim mesmo
Body's my holding cell
= Meu corpo é minha cela

Não se trata da música em si, pois ela tem um tema central que foge à intenção que aqui ilustra. A composição é auto-explicativa na totalidade de sua letra, entretanto, alguns trechos isolados, quando reinterpretados e contextualizados, podem nos conduzir a um novo entendimento sobre outras eventualidades. É o que pretendo fazer agora...

Novamente voltando à minha infância, lembro-me de um episódio do desenho animado Caverna do Dragão (Dungeons & Dragons, no original), chamado "A Prisão Sem Muros". Para retornarem ao lar, os jovens aventureiros tinham que encontrar um mago chamado Lukian, aprisionado pelo Vingador em uma "prisão sem muros", a "mais triste das prisões", segundo o Mestre dos Magos. E os jovens aventureiros se perguntavam, como seria correto e sensato, o que era uma "prisão sem muros". Depois de muita confusão, eles percebem que o tal prisioneiro e sua prisão eram uma só coisa: amaldiçoado, Lukian tornara-se uma criatura de aspecto horrendo, incapaz de se comunicar, de realizar magia ou de conseguir qualquer ajuda. Ele era prisioneiro de seu próprio corpo.


Este é outro exemplo emblemático.

Continuando a ter, como referência, a minha infância e juventude, lembro-me que eu tinha o habito de me banhar na chuva. E as chuvas do Centro-Oeste eram respeitáveis. São até hoje. Mas eu não estava nem aí: toda vez que o céu desabava,  eu podia ser encontrado na rua, brincando e fazendo algazarra, mesmo que sozinho, na maioria das vezes. Tomar banho de chuva era bom de mais. E eu não me lembro de uma ocasião em que, brincando na chuva, eu tenha ficado resfriado, gripado ou doente de qualquer forma.

Depois que fiquei adulto, ou seja, depois dos 18 anos, período em que fui tragado pela sociedade e pelo "mundo real", perdi o prazer de tomar banho de chuva. Mas tenho várias recordações de ter sido apanhado por ela. Talvez a chuva sentisse saudade de nossas brincadeiras... Mas o fato é que, depois de ter me tornado um "homem de compromissos", tomar banho de chuva significava prejuízo: molhava a roupa ou material de estudo, ou uniforme e materiais de trabalho. Sempre que chovia alguma coisa ruim acontecia, em algo minha vida se atrapalhava, e até hoje foi assim. E, nestas ocasiões, era comum eu ficar de mau-humor. Aliás, parece que somente as crianças encontram algum prazer na chuva hoje em dia, e olhe lá...


Curioso: nestas ultimas duas semanas eu fui apanhado pela chuva, no meio de um trajeto longo, sem qualquer possibilidade de me proteger. E em todas as duas ocasiões eu fiquei doente. Mas quando eu era garoto não tinha destas coisas. Por que será?

Há quem diga que é pelo nível elevado de poluentes e microorganismos que são inalados por nós, depois da chuva, e que o resfriamento do corpo, somado ao repentino aumento da umidade relativa do ar, potencializa o surgimento de doenças oportunistas devido à fragilização do sistema imunológico.

Não sou nenhum especialista em saúde, mas acho isto algo ridículo, carente de aprofundamento científico mais sólido e consistente. De fato, a ciência não é um bloco monolítico, ela não é uniforme, nem universal e nem harmônica em suas constatações, mesmo que elas venham do mesmo domínio científico. Há opiniões e opiniões, teorias e teorias, e muitas destas são divergentes e mesmo antagônicas entre si. É como o caso do ovo de galinha ou da carne vermelha: há quem diga que faz mal, há quem diga que faz bem... E todas as opiniões são científicas.

Abiogênese ou "Geração Espontânea"

Não vou entrar no mérito de qual destas é ou não a mais válida. Depois de ter vivido tantos anos no meio acadêmico, acabei aprendendo que a tendenciosidade é algo corriqueiro, mesmo que condenável. Vergonha para a Academia, pois ela - e a sociedade - perdem com tais comportamentos.

Mas o caso não é este, embora ambos se relacionem. O caso é: porque as crianças parecem ser imunes à chuva, e os adultos não? Ou melhor ainda: por que as crianças - e adultos - de ontem eram mais resistentes à chuva do que hoje em dia?

Já faz algum tempo que recebi um e-mail bem humorado que falava justamente sobre este questionamento. Havia uma série de situações reportadas onde as gerações que nasceram até a década de 80, do século passado, gozavam de certa imunidade, quando comparadas com as crianças de hoje. Era o caso de banhar-se na chuva, de andar descalço, de brincar na terra, de brincar com animais, de se enfiar no mato (esconde-esconde ou pique-pega) ou mesmo de participar de brincadeiras e ou esportes mais agitados, e com relativo risco à "segurança", como era o caso de andar de patins, de skate, de jogar bola no asfalto...


E tal e-mail era concluído com o fato de que, paradoxalmente, as crianças de hoje em dia, bem mais protegidas, também são bem mais frágeis e mais debilitadas, pois sempre estão com gripes, resfriados, alergias... Mas que as crianças de ontem, e que são os adultos de hoje, ainda gozam de boa saúde.

Que será, então, destas crianças de hoje quando for amanhã? Que tipo de saúde terão? Pior: será que terão alguma saúde?

E há certa lógica no e-mail. Assim como há certa lógica quando seu teor passa a ser o contexto do trecho da música "One", do Metallica, ou do capítulo "Prisão Sem Muros", do desenho Caverna do Dragão. E estes três exemplos se convergem em uma única e aterradora pergunta: que tipo de liberdade é esta que nós temos?

Não podemos fazer nada pois corremos o risco de ficarmos doentes. Não podemos comer nada pois corremos o risco de ficarmos doente. Não podemos fazer esporte algum pois corremos o risco de ficarmos doente. Sem lazer, sem diversão, sem vida...


Cada vez mais o mundo "real" é substituído pelo mundo virtual. Cada vez menos há natureza, e cada vez mais há recursos eletrônicos. E, em escala de proporções, as ruas, as praças e os bosques estão cada vez mais vazios. E mesmo quando alguém se ajunta neles, parece que isto trás alguma velada ameaça aos que estão de fora: Quem são eles? Que querem? Que fazem? São marginais, aposto! Estão se drogando, quer ver? Onde estão os pais destas crianças? Que absurdo, uma criança de família não ficaria tão largada...

A socialização coletiva está cada vez mais restrita a espaços ainda mais restritos e ou ambientes noturnos de diversão e descontração: bares, boates, shopings, shows... E parece que, à medida em que se envelhece, a diversão vai se restringindo paulatinamente à bebida e sexo. Nada contra, eu adoro os dois, de verdade. Mas a vida não se limita apenas a isto. Há bem mais do que estes prazeres no mundo, mas poucas são as pessoas que se arriscam a buscar tais prazeres. E esta escassez acaba encarecendo tais diversões e lazeres.

Surfar é uma aventura deliciosa. Andar de skate e patins também. Voar de asa-delta ou pular de para-quedas é fantástico. Esquiar também é. Rapel e bang-jump são adrenalina pura e instantânea. Competições atléticas também. Artes marciais fazem bem à saúde física, mental e espiritual. E qualquer esporte é assim também. E há tantas possibilidades, tantas alternativas...


Todavia, as pessoas estão cada vez mais enclausuradas. E as prisões estão se tornando cada vez mais refinadas.

A reclusão é sutil e perniciosamente conveniente, e o confinamento é suave e progressivo.

Primeiro, reduzimos o número dos nossos contatos efetivos. Pessoas? Só se for as mais íntimas amizades do trabalho, da escola e a família. Locais? Só se for a própria casa, a casa de um amigo ou parente, ou ambientes "seguros" e fechados. VIPs, de preferência.

Diversão? Só se for uma que não envolva riscos à saúde e à integridade corporal. E mais vale ter um corpinho débil e frágil do que passar vergonha ao exercitar-se, ou ser presenteado com eventuais arranhões ou fraturas. Além disso, há o risco de sofrermos acidentes mais sérios, ou mesmo de sermos assaltados. E os medos estão falando cada vez mais alto.


MEDO!!!

Este é o nosso carcereiro, no final das contas. Ele nos confina em nós mesmos, cada vez mais. Assim passamos a ter medo de nos expor, primeiro fisicamente, depois mentalmente e, por fim, até mesmo espiritualmente.

E não se enganem: já começou.

A "liberdade de expressão" está sob severa ameaça. E o Estado, que deveria ser o protetor, será o seu algoz. Aliás, já está sendo. E para quem duvida, pense filosoficamente sobre o que vem a ser esta onda de termos "politicamente corretos". Dentre todas as panacéias, o "politicamente correto" é o maior placebos. A diferença é que o comum placebo medicamentoso ainda pode curar alguma coisa; o "politicamente correto" só mascara os sintomas dos males que pretensamente combate, o que torna a patologia ainda pior e mais grave: ele a torna crônica.

Além disto, o pensamento errado que não se manifesta não pode ser corrigido. E se até mesmo as crianças são doutrinadas a não dizerem o que pensam, sob risco de intransigente pena, as mentalidades não serão retificadas, ao contrário, a hipocrisia será cada vez mais ratificada.


E os vícios mentais, com o tempo, se tornam tão profundos e tenazes, que se convertem em vícios espirituais.

Há, sobre tal assunto, muito o que ser discutido, e é o tipo de tema que vale amplo debate. Entretanto, se as pessoa se melindram ou se elas se amedrontam diante desta necessidade, que há para ser discutido? Como a dialética pode ser realizada, nestas condições? O "politicamente correto" é a estagnação da saúde mental, assim como o "ficar em casa" é a estagnação da saúde corporal. A saúde espiritual depende grandemente destas duas, e uma não permanece boa sem que as outras também estejam. É assim que somos enquanto seres integrais.

A consequência deste prisão sem muros, auto-imposta e aparentemente intransponível, é a letargia, é a conivência silenciosa e a fúria explosiva, desvairada e inconsequente.

As pessoas não tomam providência nenhuma quando os problemas começam a surgir.

As pessoas se calam e aceitam quando estes problemas se tornam mais grave e revoltantes.

Caso Mensalão

Por fim, elas explodem violentamente, e sem qualquer direcionamento, quando tudo torna-se absolutamente insuportável.

Nestas horas, doa a quem doer, as vítimas - e somente as vítimas, mas não todas - irão buscar "justiça". Pena que nem sempre os justiçados são os verdadeiros criminosos... E é mais pena ainda que depois da explosão, quando a poeira baixa, todo volta a ser do mesmo jeito, e repete-se a letargia e a conivência silenciosa até o dia de uma nova explosão.

Vítimas das enchentes do RJ: Comovente? Sim! Revoltante? Só se for no Twitter...

Essa passividade morosa nos torna menos que animais. As vítimas, depois de um tempo, se tornam apenas dados estatísticos nas mãos dos mesmos políticos que nada fizeram, quando muito poderiam ter feito. Mas, ainda assim, todos se calam, pois "todos já sabem como é que é" (e isto tristemente consolida o trocadilho de uma conhecida frase utilizada pelo Poder Público: "eu sou brasileiro, eu não aprendo nunca").

E é justamente este o perigo: as explosões estão se tornando cada vez mais raras, pois a letargia e a conivência silenciosa estão cada vez mais fortes.

E, então, a gente deve se perguntar: o que mais estamos tirando de nós mesmos, além de nossa saúde e de nossa liberdade?

Que triste é esta prisão em que estamos nos enfiando...


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