quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O ÍNDIO SOU EU!



Seguia-se um importante encontro de ilustríssimos senhores doutores em causas sem efeito, quando numa das mesas redondas um renomado antropólogo foi interpelado por uma sexóloga: - se os índios quisessem hoje praticar a antropofagia, o senhor concordaria? - Naturalmente, respondeu o antropólogo, afinal, se é para manterem sua tradicional cultura, que os índios se comam em paz! - É mesmo, só assim continuaremos a ter índios, pois do contrário, sem o ato sexual, os índios se extinguiriam! – retrucou a sexóloga.
Conversas bizarras a parte, a discussão continuou com seu tom característico: muita exaltação e poucos resultados. Afinal, cada um dos debatedores parecia ter em mente que “as coisas simples são muito complicadas, mas se tornadas complexas dão a impressão de seriedade”.[1] Discutia-se então se os índios de hoje poderiam ser considerados índios ainda, uma vez que sua cultura original a muito fora transformada.
Levando em consideração que nossos ouvidos não são descargas, cuja maior utilidade é entupir nossa mente com dejetos, irei poupá-los dos argumentos - todos eles tão originais quanto a questão: Deus existe? – proferidos e devidamente enquadrados em categorias racionais. Ardorosamente pronunciados, pelas brilhantes autoridades em assuntos acadêmicos, eles ganhavam vida própria e, por conseguinte, optavam pelo suicídio, fazendo uso do “livre arbítrio” – eram mais inteligentes do que seus criadores.
Segui, todavia, entediado, mas assistindo toda a confusão, como testemunha ocular do crime premeditado, pavorosamente estupefato diante da mesma coisa que sempre faz tudo outra vez. Foi quando, para espanto geral da nação, observei erguer-se um curioso ser, cuja voz, após ser impelida pela mente, bradou:
"Senhoras e senhores, gente de toda sorte ou azar, a questão construtiva não é saber se os índios continuam a ser índios ou não, mas sim se nós ainda somos o que somos ou se por estarmos diferentes acaso somos outros!
Ora, o termo ‘índio’ é uma construção intelectual, um conceito histórico datado da segunda metade do século XX para designar os povos remanescentes da América Pré-Colombiana. Remonta a Cristóvão Colombo, entretanto, a palavra ‘índio’. Ao desembarcar na América, pensando ter encontrado as Índias, ele chamou aos nativos de ‘índios’. Naturalizado, este termo passou a designar sob um mesmo nome, de forma arbitrária, grosseira e preconceituosa todos aqueles povos, tão diferentes entre si física e culturalmente, que habitavam o que hoje em dia vem a ser a América.
Desta forma, é equivocado o uso do termo ‘cultura indígena’, pois não existem ‘índios’ antes da chegada dos europeus, mas sim diferentes povos, cada qual com seu nome e cultura própria, ainda que entre eles algumas características se assemelhem. Este equívoco, contudo, é multiplicado e ganha formas mais corpulentas quando, embriagados pelos conceitos, discutimos se os índios atuais podem ser ainda considerados índios ou não, dada a transformação cultural da qual foram vítimas e agentes.
Ora bolas, pergunto-vos: deixamos de ser quem somos por mudar nossos hábitos ou costumes? Minha geração não possui os mesmos costumes que possuía a geração dos meus pais. Ainda assim sou fruto deles, aprendi boa parte do que sei com meus ‘velhos’ e sinto-me, honestamente, um continuador da grande obrar familiar a qual eles serviram. Deixei de ser o que sou só porque prefiro chocolate à rapadura, refrigerante à café?
Do mesmo modo procuro servir minha Nação, algo que fez o meu avô, e que tantos outros igualmente intentaram em fazer. Sou menos brasileiro do que eles apenas pelo fato de viver uns oitenta ou noventa anos depois? Seriam eles os verdadeiros brasileiros, guardiões da cultura brasileira, e eu um descendente de brasileiros cuja marca desbotou? Posso ter outros costumes, ter outros interesses e formas de pensar, mas ainda assim procuro dar continuidade a grande obra coletiva que é construir o Brasil. Mantenho vivo na memória o desejo daqueles que ousaram em querer ou lutar por um país melhor. Não os renego ou debocho. Exemplo disto, honro àqueles que serviram à Pátria na ‘Guerra do Paraguai’. Pobre deles, sonhavam ser heróis lembrados e transformaram-se em ‘massa de manobra do capital estrangeiro imperialista ou, em outros termos, uns otários’. E por quê? Porque falta a este país algo que eu tenho e mantenho vivo dentro de mim, mais forte do que o fogo doméstico dos antigos cultos ao lar (bravata...): Tradição! Falta a todo o povo brasileiro conhecer e respeitar as glórias deste país, que jamais deixaram ou deixarão de existir por um mau momento político ou econômico. Mas o espírito desta Nação está doente. Causa desconhecida para o molusco de barbas que não respeita nossa Egrégora, antes a sufoca.
Mas voltemos à questão: os índios ainda são índios ou não? Tenho a dizer sobre isto que cultura é algo intermitente, sua própria dinâmica é de transformação. Cultura não é algo cristalizado, imóvel e estático. Cultura designa todas as coisas que o homem realizou e que não podem ser creditadas à sua natureza. Cultura, portanto, é tudo o que o homem criou! E, ironicamente, por enganar sua própria natureza, o homem tornou-se um ser que sempre cria, recria e inventa outra vez num ciclo interminável e eterno. Posso viver, desta forma, numa outra ‘cultura’ que não a dos meus avós. Mas entre nós a um laço maior: a Tradição. Se mantida, estaremos juntos até o sempre! Os índios podem viver numa outra ‘cultura’ (e uma cultura sempre é resultado de outra, sendo difícil discernir cada uma delas... não obstante existirem somente no plano ideal), mas se eles mantêm na memória e nas ações uma Tradição herdade, reconhecendo e conhecendo sua ancestralidade, então, por Deus, eles são índios! Mais índios do que nós somos brasileiros, cuja Tradição foi perdida e memória corrompida, num ato criminoso de subversão!"


O antropólogo ficou boquiaberto e deixou escapar: o índio sou eu!


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[1] Frase atribuída ao filósofo Eduardo Melo.

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