terça-feira, 27 de julho de 2010

A vida numa panela

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Certos dias da semana parecem possuir "alma" própria. O Domingo é um deles. Para mim, o que torna o domingo um dia especial, ao ponto de ter sua "alma", são as memórias à ele vinculadas. A mais deliciosa, literalmente falando, é a que tenho do domingo como uma reunião de amigos e, atrevo-me a dizer, de familiares.



Vejo-me constantemente, nestas recordações, sentado junto à uma pequena mesa circular, no centro de uma cozinha bem organizada e aconchegante. À frente do fogão, um senhor aparentemente frágil, mas que desmente tal aspecto com seu gênio forte, caráter ilibado, temperamento audaz, impetuoso jeito de ser e  munido com seu eterno bom humor, prepara um Arroz de Carreteiro. Enquanto faz sua mágica, sua voz grave e sonora fala-me sobre coisas como cultura, tradição, espiritualidade, família, amigos, vida, viver, dignidade, integridade, hombridade, lealdade, amizade, esperança... E os assuntos se sucedem e se misturam com tal harmonia, que parecem ser sempre a mesma conversa, ainda dentro do mesmo tema.

As risadas são constantes, mesmo em assuntos sérios e doloridos. E as mais belas e valiosas lições de vida são compartilhadas com humor e -  por que não? - certo deboche: ri-se da seriedade demasiada que se dá as coisas, e ri-se de si mesmo diante das próprias tolices, loucuras, vacilos e erros. É quando aprender torna-se fácil e divertido. E é quando se compreende que viver é mais do que o que se faz, e menos do que se imagina dever fazer, e que é sempre possível recomeçar, mesmo nas mais difíceis situações.

Este senhor, diante do fogão, me chama com frequência para aprender o segredo de seu "secretíssimo" toque gastronômico.

"Veja, meu caro Hentai. É preciso que esteja assim... Tem que estar deste modo... É assim que a gente faz lá em... Veja a cor... Veja o brilho... Sinta o cheiro...", ele diz. "Eu nem preciso provar: só de ver, e sentir, sei o que falta, e sei quando está bom". "Medida é coisa de gente fraca: eu vou é no olhômetro"! E eu me divirto com seu jeito de ser, e com sua didática extravagante e original.



Nos domingos de minha memória, quando estou como convidado deste nobre anfitrião, a mesa é servida por todos, e as honras são dadas à Senhora da Casa, sua esposa, fiel companheira, testemunha e motivação de sua trajetória. Antes, durante e depois das refeições de domingo, vejo os dois brincarem, e trocarem carinhos e afagos. Há todo um teatro, e eu vejo a cumplicidade que une os dois, principalmente nela, que participa das brincadeiras mesmo sem estar nem aí pra elas. Há, sim, os desentendimentos, mas mesmo estes parecem ter, como as demais coisas deles dois, a particularidade de suas cores, e uma aura de peculiaridade, somada à imponente impressão de que no universo deles, na intimidade do lar deles, eles se entendem em um nível que só é compreensível plenamente pelos dois, e somente pelos dois.

Rodeados por um magnífico jardim, tratado com esmero e dedicação, e entre brindes e gracejos, vou aprendendo o jeito correto de portar-me à mesa, e de ser civilizado durante a refeição. E a cada um destes domingos, torno-me melhor, mais culto, mais espiritualizado, e mais refinado. Expando o significado de "companheirismo" e de "fraternidade". E vejo, nas rugas e no manquejar dos dois, tudo do que desejo ter, para mim, quando eu mesmo tiver visto tantas primaveras quanto eles.

 Ainda em meio ao exuberante jardim, e sempre que possível, o chimarrão entra na roda. De mão em mão, ele torna-se o exemplo materializado da tradição de um povo, e dos costumes que superam os limites do tempo e do espaço. Tudo tem um gosto meio ritualístico: há o jeito certo de preparar, há o jeito certo de servir, há o jeito certo de tomar, há o jeito certo de pegar, abastecer de água, e servir ao próximo. E qual é o jeito certo? O jeito da TRADIÇÃO.



Enquanto o chimarrão passa de mão em mão, histórias de um tempo distante, mas vívido, ecoa pelo jardim carregados pela voz de tenor. Histórias de uma família, contada às gerações sem jamais se perder, ganha vida na imaginação da seleta plateia que a ouve atentamente. E é quando percebo: somos, também, parte desta família.

E isto me honra. Nada poderia ser mais enobrecedor.

No final do dia, nós nos despedimos. Mas há sempre a promessa do "no próximo domingo". E por mais que demorem, estes domingos chegam. As vezes só os dois nos recebem. As vezes a família toda se reúne. Duas ou três gerações se encontram, mas a impressão é que mesmo os mais distantes antepassados estão lá, em espírito, apreciando e participando da reunião, e assim como eu e tantos outros, se riem das histórias e dos causos contados nas rodas de chimarrão.



"Tchau, Mocho!", saudação ao guardião espiritual da casa, é a penúltima coisa que digo ao sair pelos portões daquele lar-fortaleza. A ultima é sempre "até mais, Professor". E esta ultima palavra sai de minha boca carregada de importância, nobreza e admiração. E é observando a figura dele que eu me sinto honrado com a profissão que escolhi para mim. Com um aperto de mãos, viro-me para ir embora, e já com a intenção de voltar mais uma vez. Sempre mais uma vez. Sempre.

Ao chegar em casa, geralmente alguns quilos mais pesado, e muitos anos mais sábio e vivido, relembro a beleza de tais momentos, tão apreciáveis, e  alimento-me deles, e com eles me entrego ao sono. E nos dias que se seguem eu continuo a viver os "outros dias da semana", com a cotidiana luta e labuta. E quando chega o domingo, mesmo não estando lá, inicio o ritual todo novamente:

"Bom dia, Mocho! Bom dia Professor! Bom dia Dona Rosa!"

Nestes domingos, quando não estou lá, faço-me presente em espírito, e torno meu próprio lar, na medida do possível, a cópia daquele ambiente venerável. E se vou preparar o arroz, lembro-me das histórias, e da voz reverberante a dizer: "vem ver Hentai, como é que fica. É assim que tem que ficar! Tá vendo?".

Nestes dias de domingo a vida se torna uma celebração, e para mim, Viver Bem passa a ter um referencial, e saber viver torna-se tão simples quanto saber cozinhar. É essencial ter sensibilidade, pois é preciso "extrair o que há de melhor em cada ingrediente". É necessário ser atencioso, para "utilizar estes ingredientes na hora certa, e do jeito certo". É preciso ser bem humorado, bem articulado, bem ativo e criativo, para que o antes e o depois também façam parte da refeição.

Hoje, quando eu olho para uma panela de arroz, eu penso na vida. E digo a mim mesmo, com um sorriso cândido nos lábios:

"É... A vida cabe numa panela de arroz".

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Um comentário:

Rodrigo Sensei disse...

"Emocionante", é como considero esta belíssima postagem, Henrique!

Enquanto lia, lembrava destes domingos mais que perfeitos... Da "bolha" de energia boa que nos circunda quando adentramos o lar/fortaleza desses dois! Essa postagem ficará guardada no meu coração.

E deixe-me dizer que muito me orgulha ter passado por esses mesmos momentos perto de pessoas como você!